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As Mendozas dentro de Mendoza

Um breve panorama histórico de Mendoza, da Malbec na Argentina e de como as Indicações Geográficas de Mendoza vêm ganhando força.
por Leandro Lima, dipWSET.

As Mendozas dentro de Mendoza

Um breve panorama histórico de Mendoza, da Malbec na Argentina e de como as Indicações Geográficas de Mendoza vêm ganhando força. 

por Leandro Lima, dipWSET

Até pouco tempo atrás era relativamente fácil saber de onde vinham os bons vinhos Argentinos. Esse lugar tinha um nome, e esse nome era Mendoza.

Não que Mendoza tenha perdido alguma relevância, muito pelo contrário. Mendoza continua a sendo região mais importante da Argentina, com a maior quantidade de vinícolas do país, e mais de 75% dos vinhedos. Mas há um movimento acontecendo por ali, e aos poucos vamos percebendo novos termos aparecendo nos rótulos. Nomes de sub-regiões antes sem importância vêm ganhando destaque, e já não é possível se falar somente em uma Mendoza, há que se falar de várias. 

Os alicerces da produção de vinhos em Mendoza

A história dos vinhos argentinos começou no século 16, com a chegada dos colonizadores espanhóis. Mendoza pode não ter sido o primeiro lugar onde as videiras foram plantadas na Argentina, mas foi em Cuyo – “o país do deserto” na língua dos povos originários locais (e que hoje compreende as regiões de La Rioja, San Juan e Mendoza) que as videiras se deram melhor originalmente. Com as primeiras videiras estavam fincados os primeiros alicerces da futura indústria do vinho, mas o verdadeiro boom só viria muito depois. 

Foi no final do século 19, em plena expansão populacional, que se formaram as bases para a moderna indústria do vinho argentino. A onda de imigrantes europeus, entre eles italianos, franceses, espanhóis e portugueses (muitos deles viticultores afetados pela phylloxera), não só veio com uma nova gama de variedades na mala, como também trouxe técnicas de vinificação mais modernas ao país. Além disso, essa nova população de imigrantes se tornou ela mesma uma base consumidora de vinhos, que não tendo condições econômicas para comprar vinhos importados de outros países, se tornou um mercado consumidor para os vinhos locais. 

Mendoza era então uma província árida e longínqua quando no final do século dezenove chegou à ferrovia, ligando-a à Buenos Aires. De isolada e distante, a província passou a ficar a menos de um dia de distância da capital.  Com isso, um novo mercado se abria ao vinho mendocino, e a região juntava uma série de atributos que a colocava em uma posição ideal para abastecer esse mercado. 

Onde as videiras encontraram um lar

Situada aos pés da cordilheira dos Andes, a província de Mendoza junta várias características consideradas ideias para a produção de vinhos de qualidade. Formando uma verdadeira barreira de proteção, os Andes bloqueiam os ventos úmidos vindos do pacífico, gerando um clima semidesértico na região, uma proteção natural para as doenças fúngicas. Por outro lado, ao mesmo tempo que criam condições de escassez de chuva, trazem também a solução para quando a seca é demasiada: a água de degelo que forma rios e riachos, é ainda hoje a principal fonte de irrigação de Mendoza. 

A altitude é outra grande vantagem, trazendo uma grande amplitude de temperaturas entre dia e noite. O frio que vem da montanha refresca as noites após dias ensolarados onde não se vê uma única nuvem no céu e as videiras têm condições de promover um longo amadurecimento de suas uvas, ao mesmo tempo que trazem concentração de sabores e mantêm acidez e estrutura de taninos. 

Isolada no oeste argentino, Mendoza tem também um clima continental, com estações bem definidas, o que é ótimo para o ciclo da videira. Tem além disso, uma grande diversidade de solos, acentuada ainda mais pela geografia andina que mescla e expõe camadas de solos de milhares de anos, e pela ação dos seus rios que depositam solos aluviais. Há desde solos pobres e pedregosos, capazes de produzir uva de excelente qualidade a solos aluviais nas planícies, mais ricos em matéria orgânica e capazes de produzir grande quantidade de fruta. 

A Malbec ganha o mundo

Ao longo dos dois últimos séculos, a produção de vinho em Mendoza teve várias fases, e assim como a própria economia argentina, passou por vários altos e baixos. Mas foi entre os anos 90 e os anos 2000 que a província se tornou a potência exportadora que é hoje. Em um momento da economia Argentina em que o peso foi pareado ao dólar, o mercado argentino se abriu, enfim, ao mundo. Esse momento foi acompanhado por uma onda de aumento de qualidade, quando os produtores puderam investir em insumos importados, como equipamentos, barricas e clones selecionados. 

Após anos de produção voltada para o mercado nacional, principalmente de vinhos baratos feitos de uva do tipo “Criolla”, os produtores em crise enxergaram como a única saída as exportações. Variedades internacionais como Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay, foram mais uma vez plantadas pensando no mercado externo. 

No começo dos anos 2000 as exportações de vinho argentino estavam em alta. Em um mundo que ainda olhava muito para o velho mundo como referência, ter um vinho argentino numa carta nos Estados Unidos ou na Inglaterra já era o bastante exótico. Nessa época, os produtores argentinos ainda estavam descobrindo as variedades que se adaptavam melhor em cada lugar, num processo de tentativa e erro, e ninguém falava muito, ainda, em terroir. O principal mercado da época, os Estados Unidos, era ávido por um estilo de vinho, rico, com cor intensa, muito extraído e maduro, com muita madeira e taninos aveludados. Mendoza juntava as condições de entregar esse estilo, e tinha também uma uva ia acertar em cheio o paladar americano a partir de meados dos anos 90, a Malbec.

A Malbec

Com sua produção em declínio na Europa, e resgatada em Mendoza, a Malbec, com sua fruta abundante, cor intensa, e taninos macios, caiu no gosto do mercado americano e internacional. Exótica aos olhos do mundo de então, relativamente desconhecida tanto dentro como fora da França, mas entregando fruta, robustez, qualidade e maciez em Mendoza, a Malbec virou sucesso de pública e crítica rapidamente e aos poucos se tornou uma espécie de uva nacional argentina

O sucesso tremendo fez do Malbec o vinho mais exportado da Argentina, posição que mantém até hoje. Em resposta à excelente aceitação, rios de Malbec foram sendo plantados e vendidos todos os anos. A Malbec passou a ser uma commodity e Mendoza, o nome da região estampado em todas as garrafas, virou uma marca.  

Mas como contornar esse cenário? O que fazer com essas duas palavras que mesmo tendo muita força, foram perdendo com o tempo o seu poder de diferenciação? A resposta já está em curso, e se olharmos atentamente para os rótulos de Mendoza ultimamente, podemos sentir um movimento acontecendo, como o barulho de uma onda se aproximando.

Mudanças em curso

Ao longo dos últimos 30 anos, os produtores foram adentrando cada vez mais no território de Mendoza, e plantando em regiões inóspitas mais ao sul do território e mais alto nas montanhas. E onde quer que tenham ido, plantaram Malbec. Com o tempo, os novos vinhos desses locais foram sendo produzidos, e as sutilezas e diferenças dos vinhos produzidos em diferentes terroirs foram aparecendo. Despida dos excessos de maquiagem dos anos 90, com menos madeira e menos extração, a Malbec passou a ser o veículo ideal de comparação entre esses novos terrenos. Afinal, quem não conhece o estilo de um tradicional Mabec argentino? Termos como Malbec de altitude, e nomes de microrregiões antes desconhecidas, passaram a surgir no vocabulário local. 

Correndo paralelo a esses movimentos, veio a modernização do sistema de indicações geográficas na argentina, o que aconteceu entre os anos 1999 e 2004. Não que não houvesse tentativas anteriores. A DOC Luján de Cuyo (criada em 1990), e a DOC San Rafael (de 1993) foram as primeiras DOCs de Mendoza, mas seguiam ainda uma diretriz regional e não nacional.

Entendendo as denominações de origem

O sistema moderno de denominações de origem (DOs) e Indicações geográficas (IGs) da Argentina é inspirado no modelo europeu, mas com algumas diferenças. Atualmente dentro do sistema argentino, os vinhos podem ou não ter uma indicação de origem geográfica. O sistema é dividido basicamente em três níveis: o mais genérico deles a Indicação de Procedência (IP), seguido pela Indicação Geográfica (IG) e por último, o mais detalhado, a Denominação de Origem (DO).

A IP identifica unicamente a procedência geográfica das uvas com as quais foi produzido o vinho, podendo coincidir com as zonas administrativas. Logo no princípio, após a nova legislação ser criada, foram criadas várias IPs, com os nomes geográficos de todas as províncias vitivinícolas da época. Entre elas, Mendoza, San Juan, La Rioja, Salta e Neuquén. 

Já a (IG), Indicação Geográfica se aprofunda um pouco mais, no sentido de que tenta distinguir as qualidades de um produto como vinculadas a características geográficas de determinada região. Pode ser um nome geográfico de uma região, localidade ou uma área, que pode ou não coincidir com as regiões administrativas. 

As IGS se modernizam

Ainda que as primeiras IGs argentinas tenham sido definidas por critério geográficos, foi em 2012, com a aprovação da IG Paraje Altamira, que uma Indicação Geográfica argentina foi criada pela primeira vez usando critérios mais próximos do modelo europeu, levando em conta uma série de dados, como a composição dos solos e o microclima de uma determinada localidade para definir os marcos da IG.

Passou a se fazer mais sentido, nesse momento, usar com mais segurança a palavra terroir, para reivindicar as características únicas impressas pelo local, em determinados vinhos. 

Depois de Paraje Altamira vieram outras IGs, utilizando critérios semelhantes.  Cada vez mais, vemos impressos nos rótulos nomes de novas IGs, como Los Chacayes, Cordón El Cepillo, El Peral, e San Pablo, cada uma evocando sua origem e reivindicando a qualidade de seus vinhos. 

Outros nomes de microrregiões vêm surgindo e fazendo uma hype também. Gualtallary é um deles, que embora ainda não seja uma IG, vem sendo usado como marca e imprimindo nos vinhos suas características de terroir. 

Diferentes Estilos

De commodity condenada a fazer vinhos iguais e indiferenciados, a Malbec passou a ser o veículo para mostrar os diferentes terroirs argentinos. 

Já se fala, inclusive, na diferença de estilos dos vinhos vindos de cada microrregião. Em Los Chacayes, no Valle de Uco, por exemplo, fala-se em um estilo estruturado, com acidez alta e taninos firmes, muitas vezes com capacidade de envelhecer. Em Agrelo, Luján de Cuyo, temos suculência, fruta madura concentrada e taninos macios. Paraje Altamira, traz um estilo fresco, com aromas florais e taninos sedosos, mas estruturados. Já Gualtallary faz vinhos com acidez alta e afiada, fruta menos marcada, mas nuances herbais, florais e saborosas que podem desenvolver aromas terciários complexos ao longo dos anos. 

Ainda há muito a se explorar e não é só de Malbec que estamos falando. Outras variedades tem sido testadas, levando em conta os diferentes solos e microclimas. Variedades como a Cabernet Franc, a Chardonnay, a Semillón e a Sauvignon Blanc, começam a mostrar diferenças de estilo de acordo com os lugares onde são plantadas, imprimindo as marcas dos terroirs. 

E as DOs?

O destino das DOs por outro lado, ainda é incerto. As DOs, estreitam ainda mais as regras, sendo que além de delimitar a área de produção, incluem fatores naturais e humanos, como as variedades que são permitidas em cada local, e as técnicas de produção. 

Talvez seja esse o ponto mais difícil de alcançar no momento. Diferente da Europa, onde o vinho é produzido a muitos séculos e os estilos relacionados a cada região são mais bem definidos, a Argentina ainda é relativamente nova nesse sentido. Ainda é cedo para associar uma DO de acordo com um determinado estilo de vinho e definir quais técnicas e variedades que podem ou não serem usadas. Talvez com o tempo e amadurecimento das IGs, as DOs venham a ser uma evolução natural, mas atualmente, o modelo das IGs parece fazer mais sentido. 

Um bom resumo para diferenciar as IGs das DOs seria dizer que as IGs são o reconhecimento das características de um vinho em relação a um lugar, e já as DOs seriam o reconhecimento de um estilo de elaboração associado a um lugar. Olhando para fora, um bom exemplo de Denominação de Origem seria a DOCa Rioja, na Espanha, que imprime seus estilos Joven, Crianza, Reserva e Gran Reserva dentro das regras da região, com as uvas permitidas para a região toda e tempos de maturação e uso de madeira inerentes a cada estilo. Já um bom exemplo de IG seria a IGT Toscana, na Itália, com regras mais permissivas e abrangendo uma grande região. Mas é aí também que começam as diferenças, uma vez que as novas IGs Argentinas tratam de áreas menores, com características de solo e microclimas distintos. É como se na Argentina, as IGs representassem uma mescla dos dois sistemas.

Daqui para frente

O fato é que os produtores, principalmente de linhas premium, vêm tentando diferenciar cada vez mais os seus vinhos, por características geográficas de seus terroirs específicos. Para os vinhos de mais alta gama, já não basta ser um produtor de Malbec de Mendoza, de Luján de Cuyo, ou do Vale do Uco, pois são territórios muito grandes e muito diversos. 

Uma nova geração produtores, jovens e inquietos, vem tentando imprimir sua marca e tem investido muito em pesquisa e viticultura. Se visitarmos as principais vinícolas de Mendoza hoje, vemos perfis de solo sendo mostrados em quase todas, cada uma tentando ressaltar as características únicas de seus terrenos. E com o alto grau de desenvolvimento da vitivinicultura dos últimos anos, os produtores se encontram com um arsenal de ferramentas à disposição para elevar as características únicas de seus terroirs.

A mudança de paradigma atual é no sentido de deixar a origem dos vinhos falar mais alto. Assim como na Toscana existem produtores de Brunello, de Chianti Classico, e na França alguns produzem Chablis e outros Mersault, a ideia aqui é produzir Chacayes, Paraje Altamira, Gualtallary.

Ainda é cedo para saber se o modelo de DOs vai arrancar na Argentina, da mesma forma que hoje vemos as IGs arrancando. As IGs com suas regras mais soltas parecem casar melhor com a mentalidade de novo mundo dos produtores locais. Desde a votação da nova lei em 1999, mais de 100 IGs já foram criadas, e novas IGs aparecem a cada ano. De modo geral, pode se dizer que o consumidor só tem a ganhar com a oferta cada vez maior de vinhos de terroir encontrados nas prateleiras, resta esperar que o número de novas denominações não venha a ser tão grande que só traga mais confusão ao já confuso mundo do vinho e perca todo o sentido.

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